ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL
Imortal Dra. Bárbara Heliodora - Ph.D.
Membro Vitalícia - Cadeira 003/ALB/RJ.
- Diploma expedido em 16 de junho de 2008.
Agradecimentos especiais da Presidência da Academia de Letras
do Brasil à jornalista Ana Paula Conde pela belíssima matéria,
a qual aproveitamos para apresentar a Imortal Bárbara Heliodora (Prof.
Dr. Mário Carabajal - Ph.D.).
Entrevista
TEATRO
Contra o paternalismo da crítica teatral
Por Ana Paula Conde
“Passar a mão na cabeça não é positivo para o teatro”, afirma a crítica Barbara Heliodora.
Barbara Heliodora é considerada uma crítica severa. Para os que
a questionam, ela é ferina e até sarcástica; para os que
a admiram, ela é uma espécie de guardiã das montagens nacionais.
Aos 80 anos, Heliodora divide seus dias entre escrever críticas para
o jornal “O Globo”, as viagens para realizar palestras sobre William
Shakespeare e a tradução de peças teatrais, a maior parte
escritas pelo dramaturgo inglês. “Estou trabalhando agora em ‘Muito
barulho por nada’. Ano que vem deve sair o volume com as dez tragédias
do autor pela Nova Aguilar”, diz a crítica, que ainda encontrou
tempo para escrever um dos capítulos do livro “O teatro no Brasil
no século XX”, organizado por Leonel Kaz e ainda sem previsão
de lançamento.
Desde que começou a exercer a atividade de crítica, em 1958, a
qualidade das encenações é o único fator que importa
em suas análises. Não interessa se o ator, o diretor e o autor
são conceituados. “O crítico não pode viver de fé
do ofício. Procuro avaliar cada espetáculo separadamente”,
explica Heliodora. “Elogiar uma peça ruim é estimular o
ruim a se perpetuar”, diz.
Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1923, estudou literatura inglesa na Universidade
de Connecticut, nos Estados Unidos, e foi professora de teoria teatral na Universidade
do Rio de Janeiro (UniRio), entre 1964 e 1985, período em que esteve
afastada da tarefa de escrever críticas para a imprensa.
O interesse pela obra Shakespeare começou na infância e a acompanha
até hoje. Heliodora é doutora em artes pela Universidade de São
Paulo (USP), com a tese “A expressão dramática do homem
político em Shakespeare”, lançada, em 1978, pela editora
Paz e Terra. Também é de sua autoria o livro “Falando de
Shakespeare” (Perspectiva, 1998).
A seguir, ela fala sobre o paternalismo da crítica, da falta de espaço
para a reflexão na imprensa e indica livros para quem deseja entender
mais sobre teatro brasileiro.
A senhora é considerada uma crítica severa. Qual
a razão desse rótulo?
Barbara Heliodora: Talvez seja pelo fato de respeitar o teatro, por achar que
ninguém tem direito de fazer espetáculos mal acabados. A auto-indulgência
é muito negativa. Sempre disse isso, desde que comecei a mexer com teatro.
Acho que ver uma coisa ruim e elogiar é estimular o ruim a se perpetuar.
Um grupo jovem pode não ficar satisfeito com uma crítica, mas
espero que pelo menos seus integrantes pensem: “Espera aí, talvez
tenha alguma coisa errada”.
Todo mundo fala que só gosto de determinado repertório. Não
é verdade. O que gosto é de teatro bem feito. Fazer de qualquer
modo é o que não pode acontecer. O problema do Brasil é
que em tudo nós precisamos deixar de ser amadores para ser profissionais.
Passar a mão na cabeça do que é ruim não é
positivo para o teatro.
Em artigo publicado nos “Cadernos de teatro”, editado
pelo Tablado, Yan Michalski afirma que, com algumas exceções,
a crítica no Brasil sempre foi marcada pelo paternalismo. A senhora acha
que é chamada de severa em razão dessa tradição?
Heliodora: Acho que é exatamente isso. No Brasil, dizem que sou severa,
mas as pessoas precisam ver como é a crítica no exterior. É
de uma severidade de arrasar. Um ator da categoria do Raul Julia, que infelizmente
morreu cedo, recebeu a seguinte crítica ao fazer “Othelo”,
de Shakespeare: “É preciso que o senhor Júlia e fulano,
o outro ator, que agora não lembro o nome, sejam apresentados antes de
subirem ao palco”.
Lembro de outra crítica a um ator francês famosíssimo que
dizia: “Não há nada em cena que seja válido”.
Como o Yan disse, a crítica brasileira sempre foi muito paternalista.
Tenho a impressão de que pensam assim: “Ah, falar mal prejudica
o emprego das pessoas”. Não concordo. O que acaba com os empregos
na área são os maus espetáculos. O espectador que paga
o que se paga para ir ao teatro e vê uma coisa abominável faz um
voto de castidade por pelo menos dois anos. O mau espetáculo é
o que afasta o espectador, não a crítica.
A crítica de teatro no Brasil só começa a mudar nos anos
50, com Décio de Almeida Prado e Sabato Magaldi?
Heliodora: Dizem, e ouvi isso mais de uma vez, que até a primeira metade
do século passado o crítico era a pessoa responsável por
conseguir para o jornal anúncios das companhias teatrais. Como é
possível falar mal e depois pedir anúncio? São coisas incompatíveis.
Enquanto durou esse esquema, foi impossível escrever de verdade. O grande
divisor de águas foi o Décio de Almeida Prado, em São Paulo,
que é a referência de todos nós.
O Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) foi inaugurado em 1948 e ele estava
nessa. Daí em diante, a crítica ganhou vida nova. Logo em seguida,
nos anos 50, fundamos o Círculo Independente de Críticos Teatrais
(CICT). Isso ocorreu porque a Associação Brasileira de Críticos
Teatrais (ABCT) tinha uma postura muito questionável. Se uma pessoa escrevesse
sobre teatro amador no interior do Piauí, já podia ser aceita
como membro permanente, mesmo que nunca mais publicasse nada.
O CICT foi fundado pelos críticos atuantes. Para fazer parte dele era
preciso estar assinando efetivamente uma coluna. Se a pessoa ficasse desempregada
podia continuar sócia, mas não podia votar. Criamos também
o prêmio Padre Ventura. O Gustavo Dória, o Henrique Oscar e o Paulo
Francis faziam parte do CICT. Éramos um grupo pequeno, mas todos nós
acreditávamos que a crítica tinha que ser responsável.
Vários jornais acabaram, e o espaço para a reflexão
foi reduzido. A senhora sente falta da discussão com outros críticos?
Heliodora: Se tivéssemos mais críticos teríamos outros
pontos de vista. Na realidade, acho que o leitor escolhe seu crítico.
Quando alguém diz que fulano é ótimo crítico é
porque a opinião daquela pessoa coincide com a do leitor. Se tivéssemos
mais críticos, o público teria maior escolha.
Cria-se também um debate entre os próprios críticos.
Heliodora: Claro. E o CICT era ótimo. A gente se encontrava, debatia
e promovia eventos. Organizamos cursos para formação de platéias
no antigo Teatro Maison de France, no Rio, em 1962, na época da Copa
do Mundo. Fizemos dois cursos: um sobre história do teatro universal,
com mais de 20 conferências, e outro sobre teatro brasileiro. O lugar
ficou lotado. Lembro que dei uma palestra sobre a obra de Silveira Sampaio.
Não dá para fazer isso sozinha.
Quais os novos dramaturgos brasileiros que a senhora destacaria?
Heliodora: O Mauro Rasi era a maior promessa, mas, infelizmente, morreu cedo.
Ele começou no besteirol e foi amadurecendo. Eu não gosto muito
de citar nomes, mas acho que há vários autores promissores. O
Miguel Falabella é muito talentoso. O Bosco Brasil escreveu um texto
magistral, chamado “Novas diretrizes em tempos de paz”, depois escreveu
um desastre, ”Corcovado”, e agora fez uma outra bastante interessante.
Ele é muito montado em São Paulo. É um autor que tem talento
e pode encontrar seu caminho.
É preciso dar mais espaço para os novos autores?
Heliodora: Quanto mais se montar mais eles vão melhorar. Pelo menos é
o que se espera. O pintor e o poeta podem ser descobertos um século depois
da morte, mas com o autor de teatro é diferente. Ele precisa de um palco,
ver sua obra testada, perceber a reação do público. É
a única forma de dominar cada vez mais a técnica teatral.
Fora os autores novos, qual dramaturgo brasileiro a senhora
acha que deveria ser mais montado?
Heliodora: É uma pena que as peças de Silveira Sampaio sejam tão
pouco vistas. O texto dele é de uma originalidade total, mas as raras
montagens têm sido desastradas. As pessoas não conseguem perceber
o estilo de representação dele.
Por outro lado, há autores que são sempre montados. Nelson Rodrigues
é um exemplo. Isso não é empobrecedor?
Heliodora: O Nelson precisava tirar umas férias de vez em quando. Acho
que a coisa mais criativa que vi nos últimos anos da obra do Nelson foi
“A falecida”, do Gabriel Villela. Ele fez uma montagem maravilhosa,
altamente imaginativa. Teve uma outra boa encenação recentemente
no teatro Nelson Rodrigues, mas esqueci agora. Montam tanto que a gente acaba
esquecendo. Um das melhores montagens que vi de “Beijo no asfalto”
foi em 1961, com direção de Fernando Torres, no Teatro dos Sete.
Um senhor espetáculo!
O ator Paulo Betti afirmou numa entrevista que considera problemático
o crítico ir ao teatro na estréia do espetáculo, quando
ele ainda não engrenou. A montagem deve estar pronta no dia da estréia,
não?
Heliodora: Essa defesa não é válida. Por que o público
pode pagar e o crítico não pode ver? Todo o mundo diz que a peça
amadurece com o tempo, mas se ela é ruim pode amadurecer à vontade
que não melhora. Se é boa, pode até ficar melhor, mas é
boa de saída, não tem essa bobagem. O que me choca é o
fato de acharem que podem cobrar entrada, mas o crítico não pode
ver. Ou não está pronta, e o público não deve pagar;
ou está pronta, e todo mundo pode ver.
Qual é a sua avaliação sobre atores, dramaturgos
e diretores que levam a crítica para o lado pessoal?
Heliodora: Minha intenção não é ofender ninguém.
Não podem dizer que persigo fulano ou ciclano. Tento avaliar cada trabalho
individualmente. Não posso fazer nada se alguns pensam assim, mas não
entendo o porquê dessa indignação. É muito chato
saber que a pessoa ficou ofendida.
A senhora procura ver todas as peças em cartaz?
Heliodora: Às vezes não há nada para assistir, às
vezes há tanta coisa que a gente não sabe para onde se virar.
No final, a gente acaba vendo o que pode. As pessoas acham que o crítico
gosta de falar mal. Não é verdade. Por que vou querer assistir
a espetáculos ruins? Eu adoraria que tudo fosse maravilhoso, mas nem
sempre é assim. Por isso, talvez eu prefira ver aquilo que mais promete,
o trabalho mais ambicioso. Outra coisa que atrapalha é esse negócio
de não ter mais teatro de terça a domingo. Em São Paulo,
só há sessões sextas, sábados e domingos. É
uma humilhação para o teatro.
A diminuição do número de sessões
não seria um dos reflexos da falta de público?
Heliodora: Então tratem de fazer o que é bom para atrair mais
gente. O público começou a se afastar do teatro na década
de 60, quando havia aquele negócio de agredir a platéia. A censura
também foi muito prejudicial. Vários autores interessantes deixaram
de escrever porque seus textos não podiam ser apresentados. Os iniciantes
não tinham chance de ver suas obras encenadas. Isso foi terrível.
Todo o processo do teatro brasileiro recomeçou com o besteirol, que eu
achava ótimo, porque era uma coisa imediata. Foi uma maneira muito boa
de atrair gente. A partir dessa experiência os autores foram aprendendo
e escrevendo coisas mais interessantes.
O preço do ingresso também contribui para afastar o público?
Heliodora: Nunca atribuo isso exatamente ao preço. No tempo em que o
ingresso custava oito cruzeiros, e todo mundo dizia que o teatro não
tinha público porque era caro, o Chico Anísio fazia um show por
dez cruzeiros. Ele ficou quase um ano em cartaz. A questão é o
medo de encontrar o ruim.
A desigualdade das produções faz as pessoas ficarem meio temerosas.
Se elas tivessem certeza que iriam ver algo bom, frequentariam mais o teatro.
E o boca-a-boca é fundamental nesse processo. A “Ópera do
malandro”, em cartaz no teatro Carlos Gomes, na praça Tiradentes,
no Rio, é um bom exemplo. O espetáculo está lotando todos
os dias e a temporada foi estendida até junho. Peças boas atraem
público.
A senhora gostou da “Ópera do malandro”?
Alguns críticos desaprovaram a montagem de Cláudio Botelho e Charles
Möeller.
Heliodora: Gostei muito. O texto não tem uma estrutura muito boa, mas
as músicas, maravilhosas, são muito bem cantadas no espetáculo.
Acho que as pessoas ficam ofendidas com o sucesso dos outros. É claro
que não foi a melhor coisa que vi na vida, mas a reação
do público era uma coisa fantástica. Disseram que nos domingos
de promoção (quando se cobrava R$ 1 pela entrada) foi uma loucura
total. O público ficava desatinado de entusiasmo. Isso não é
um depoimento a favor do espetáculo?
O sucesso dos programas de venda de ingressos a preços
populares não é prova de que muita gente não vai ao teatro
por falta de dinheiro?